domingo, novembro 16

KIT AUTONÓMICO

Tenho diante de mim o Kit Autonómico dos Açores. Peço ao leitor que refreie a inveja, que é dos sentimentos mais feios que se pode ter, logo a seguir ao sportinguismo. Uma leitora amiga fez o favor de me enviar o kit, cuidando que eu gostaria de o possuir e de reflectir sobre ele. Tinha razão. Possuí-lo é uma honra, reflectir sobre ele é uma empreitada de tal monta que está fora do âmbito das minhas capacidades. Reflectir, como bem sabe quem me lê habitualmente, não é o meu forte. Também não será o forte de quem me lê habitualmente, caso contrário não o faria. Cogito moderadamente bem, raciocino sofrivelmente, mas sou fraco a reflectir – e o caso exige reflexão. Por sorte, o facto de não saber fazer qualquer coisa nunca me impediu de tentar.
Comecemos pelo princípio. Primeiro, a descrição do kit. À primeira vista, o kit é uma caixa de cartão azul-escura com as palavras «Governo dos Açores» impressas a branco. Há elegância, há sobriedade, há um paralelepipedismo que é discreto sem deixar de ser inovador, que é leal sem deixar de ser, à sua maneira, vigorosamente autonómico. Dentro da caixa, o tesouro inclui: uma bandeira dos Açores; um CD com o hino dos Açores, dois luxuosos autocolantes com a bandeira açoriana para colar em vidro; um folheto sobre as insígnias honoríficas açorianas e uma carta assinada pelo próprio presidente do Governo dos Açores, Carlos César. Sem desprimor para a bandeira, o hino e os autocolantes, a carta é o elemento mais interessante do kit. É certo que a bandeira tem características curiosas, como por exemplo o facto de ser fabricada em Lisboa. Que o símbolo da autonomia dos Açores seja importado do continente é divertido mas, apesar de tudo, corriqueiro. As bandeiras portuguesas com que sublimamos o nosso amor à pátria naquelas duas semanas que duram os eventos desportivos internacionais também são feitas na China. Mas é na carta que Carlos César explica que o Kit Autonómico (a expressão é dele) se destina a promover e fazer respeitar os símbolos dos Açores. Por isso, estes «elementos referenciadores» da vida colectiva regional chegarão a todos os lares açorianos. Eu sou um velho apreciador de elementos, e os meus predilectos são, por coincidência, os referenciadores. É por isso que olho para o Kit Autonómico com um misto de admiração e ciúme.
Admiração porque confesso que não sei como foi possível, para os açorianos, experimentar a autonomia ao longo dos anos sem este útil kit. Quem se sente açoriano, se não tiver a oportunidade de passar uma tarde a escutar o hino dos Açores enquanto contempla a bandeira regional, cola autocolantes e aprofunda os seus conhecimentos sobre as insígnias honoríficas que o Governo Regional costuma atribuir? Ninguém, creio.
Ciúme porque, enquanto continental, exijo um kit parecido. A minha continentalidade tem certamente símbolos que é justo e urgente promover e respeitar. E o meu lar não tem um único elemento referenciador. A crise mundial que espere: é tempo de investir em elementos referenciadores.


Ricardo Araújo Pereira
in Visão

sábado, novembro 1